Imagine um mundo sem resíduos, no qual se pode reciclar não só os produtos, mas também os edifícios. Talvez esta ideia esteja mais próxima do que aquilo que imaginamos. Perante a emergência climática e a escassez de recursos, empresas, autoridades e particulares de todo o mundo estão a adotar cada vez mais a "circularidade", procurando formas de reduzir o consumo de materiais, através da sua partilha, reciclagem, reutilização e novo uso.
No setor da construção, uma série de testes, projetos-piloto e produtos inovadores está a impulsionar a mudança no sentido de uma abordagem mais circular na forma de construir. Mas a pressão para a mudança também tem aumentado: o ano passado, as emissões de CO2 provenientes da construção e dos edifícios aumentaram até a um máximo histórico de 40% – com as operações de construção a representarem 27% e as infraestruturas e materiais de construção 13%.
"A dimensão destes números equivale à dimensão da oportunidade", afirma Kristin Hughes, Diretora de Circularidade de Recursos do Fórum Económico Mundial. "Mas será como dar a volta a um grande cargueiro. Precisamos de uma alternativa sustentável para cada material e uma solução para gerir cada componente."
O Fórum Económico Mundial está a trabalhar ao longo de toda a cadeia de valor do setor da construção para conseguir ligar os diferentes intervenientes na conceção com a supervisão de empresas mais fortes, eficientes e rentáveis. Para Hughes, como sugere o seu cargo, a circularidade é a chave para o conseguir.
"Quando as pessoas ouvem falar de economia circular, pensam frequentemente que se refere apenas ao meio ambiente, mas vai muito além disso", refere Hughes. "A circularidade é a solução para a enorme pegada do setor, mas também a chave para encontrar novas estratégias empresariais no futuro com recursos limitados".
A necessidade impulsiona a inovação
No Reino Unido, Hughes citou um caso em que a Covid-19 se tornou o catalisador do pensamento circular. Durante a pandemia, as interrupções e os atrasos na cadeia de fornecimento fizeram abrandar o negócio de uma consultora mundial de engenharia e desenvolvimento. Por esse motivo, a empresa em vez de esperar receber materiais como aço, fio de cobre e equipamentos elétricos, começou a procurar alternativas usadas e recicladas a nível local.
"Teve tanto sucesso que agora estão à procura de formas para regulamentar esta abordagem e reproduzi-la, para melhorar a sua rentabilidade e sustentabilidade", afirma Hughes.
Aprendizagem circular
"Definitivamente, a mentalidade está a mudar", assinala Jean-Paul Bourgeat, Vice-presidente Sénior do Negócio de Modernização Global da KONE. Afirma que para a KONE, o movimento em direção à circularidade gerou novas associações, ao mesmo tempo que a empresa co-inova em termos de novos processos e modelos.
"A reciclagem existe há anos", afirma Bourgeat. "Agora a questão é como passamos para uma economia circular madura, na qual novas formas de desmontagem e reutilização de materiais seja possível, tendo em conta que a reutilização de um componente, evita ter de produzir um novo".
Uma das questões que necessitamos resolver é que a simples reciclagem de um equipamento velho ou de parte de um edifício pode não ser tão vantajoso para o meio ambiente como pode parecer à primeira vista.
"Por exemplo, se for necessário um grande número de camiões para transportar os materiais a reciclar, é evidente que esta ação se repercute na pegada de carbono", explica Bourgeat.
"A resposta centra-se provavelmente numa abordagem reutilização-reparação-reciclagem", acrescenta.
Um projeto-piloto recente na Ópera Nacional de Lyon é um bom exemplo. Este escaparate arquitetónico de 18 andares, coroado por um enorme teto curvo de vidro e construído para acolher 1500 espectadores, contava com cinco elevadores que estavam a chegar ao fim da sua vida útil.
Ao trabalhar em colaboração com a Ópera e com os agentes de abastecimento locais, a equipa da KONE pôs em marcha um processo histórico de desmantelamento e substituição. Os elevadores antigos foram meticulosamente desmontados, com 100 componentes identificados para possível reutilização e com o princípio de excluir os componentes que afetam a segurança.
Durante os ensaios da ópera e as atuações em direto, a equipa recolheu à mão e desmontou materiais que incluíam desde lâmpadas ornamentadas e quadros elétricos até mais de três quilómetros de cabos.
Em condições normais, cada um destes componentes teria sido descartado como resíduo, muitos destes foram selecionados para uma possível segunda vida e foram colocados à venda para profissionais dos setores imobiliário e da construção, entre outros.
Adequação da disponibilidade de material à respetiva procura
Kristin Hughes, do Fórum Económico Mundial, colabora com uma start-up que desenvolve soluções digitais para criar mercados de recursos reciclados, como os materiais resgatados na Ópera de Lyon, fazendo corresponder a procura dos clientes com a disponibilidade de recursos.
Tanto Hughes como Bourgeat concordam que para que a economia circular tenha verdadeiro sucesso, os materiais devem ter rastreabilidade, de forma a garantir que os compradores sabem de onde provêm e a distância que viajaram.
Os chamados "passaportes de materiais digitais", que recolhem e armazenam informações sobre os materiais de construção, já se encontram em fase de desenvolvimento e poderão incluir tecnologia RFID para rastrear todo o ciclo de vida de um determinado produto. Com isto também se pretende aumentar o interesse da indústria por estes materiais usados.
Policy to boost progress towards circularity
Por outro lado, Hughes adverte para o facto de que os responsáveis políticos nem sempre acompanham o ritmo dos avanços da indústria no sentido da circularidade. Esta refere o exemplo do cimento, que representa uns consideráveis 8% de todas as emissões de materiais de construção.
Neste sentido, Hughes explica o caso de um fabricante de materiais de construção que desenvolveu um cimento reciclado, que funciona até melhor do que o cimento novo, com uma pegada consideravelmente menor. O problema é que, apesar de a empresa se abastecer de cimento usado na Alemanha, Áustria e França, as restrições legais desses países fazem com que o produto reciclado só possa ser vendido na Suíça. "Por isso a empresa fica com todo esse cimento reciclado à espera que a legislação seja atualizada", lamenta Hughes.
Entretanto, Bourgeat considera que o setor da construção avança por outros caminhos: "Já podemos ver a forma como está a mudar a mentalidade relativamente ao desmantelamento e reconstrução, que custa muito mais a partir do ponto de vista do carbono, em relação à de renovação, remodelação e reutilização, e vemos que os nossos clientes avançam nesta direção connosco".
Embora as infraestruturas, os processos e a regulamentação necessários para uma economia circular completa possam estar ainda muito distantes, a direção da viagem está clara e muitos elementos estão já no seu posto para a transição para a circularidade. Os novos elevadores da KONE, por exemplo, são maioritariamente construídos em metal, o que significa que 90% dos componentes tem já potencial para reciclagem ou reutilização.
Hughes pretende imaginar um futuro no qual 100% dos produtos possam voltar aos seus fabricantes no fim da sua vida útil para serem reprocessados e no qual os modelos de negócio sem materiais maximizem a vida útil dos edifícios, ao mesmo tempo que abordam o problema do consumo excessivo e ajudam a resolver a crise climática.
"Às vezes, as soluções mais simples estão mesmo diante de nós", afirma.